sábado, 19 de setembro de 2009

A história do encontro

Faziam muitos anos que não se viam. E neste meio tempo, tudo mudou para os dois. David, que era um estudante irresponsável de direito - largou o curso duas vezes, mudou de cidade, chegou a fazer ciências sociais e entrou pro seminário - e um empresário frustrado, que sonhou em abrir uma cadeia de jornais, mas no máximo abriu um jornaleco mal-fadado, havia sido recém empossado como Ministro do Supremo Tribunal Federal. E tinha 39 anos. Seus cabelos já não eram mais tão cacheados como antes - sua cabeleireira dava-lhe uma escova progressiva excelente, que exterminava os cachos e transformava tudo em um cabelo escorrido - mas ainda permaneciam loiros, porque ele nunca gostou de pintar os cabelos. Os trajes permaneceram os mesmos, porque o moleque sempre gostou de vestir terno. Os olhos estavam mais claros - não vale contar que usava uma lente de contato haviam 15 anos, desde que ganhou dinheiro o suficiente pra fazer uma reforma na sua aparência.

David se tornou um brilhantíssimo jurista. Exerceu por três anos a advocacia, se tornou professor universitário de uma faculdade de direito federal, e um dia, cismou que queria virar juiz. Virou. Aos 35 anos, foi indicado pelo Governador do Rio de Janeiro para ser Desembargador. Insatisfeito, numa briga de cão-e-gato, o Presidente da República o nomeou Advogado-Geral da União aos 37. Já era um jurista de renome nacional, que lotava palestras e arrancava suspiros das meninas que o assistiam - todas com o seu livro, "A base do direito constitucional", em riste, prontos para ser autografados. Ele ainda não se sentia bem com tudo isso - a ausência de Marília em sua vida o incomodava. Eles deviam ter tido um futuro brilhante, e contudo, havia 21 anos que não tinha notícias dela. (Provavelmente, ela tinha notícias dele agora, com a sua indicação para o Supremo Tribunal Federal).

O que ele sabia de Marília, até então, é que ela se formou em ciências sociais e comunicação em multimeios. Exerceu? Não. Voltou para a sua cidade no interior do Rio, para cuidar da loja de calcinhas e cuecas e malhas que herdou dos pais. O que David lembra dela é que era uma menina muito linda, de cabelos pretos cacheados e um sorriso encantador - que enlaçou seu coração e, um dia, sumiu no mundo sem o avisar.

David viajou até Cachoeira do Macacu para encontrar Marília. Marília nunca sonharia que David - tá, agora o Ministro David Francisco Molina Casales - estava tão perto dela. Marília continuava atendendo a todos no balcão de sua loja, com o cabelo preso, a pele um pouquinho marcada pela idade e os fios ficando brancos. Estava gordinha a moça. Só preservava aquele sorriso lindo.

David pediu que os agentes da Polícia Federal fossem discretos e o seguissem de longe. Ajeitou o seu terno cinza, colocou o seu cigarro - Camel, sempre Camel - na boca e acendeu com seu isqueiro banhado a ouro, que ganhou de presente do Procurador-Geral da República pelo seu 38º aniversário. Pôs-se a caminho da Marclau, loja onde a balconista sorridente - mas no fundo, muito amargurada - recebia seus clientes.

Entrou na loja. Marília não o reconheceu bem, e ele não reconheceu de forma alguma Marília. Iniciou-se o diálogo entre os dois:
- Marília está aí? - perguntou David, afoito e aflito.
- Eu sou Marília. E o senhor, é fiscal da receita? Olha, meus papéis estão todos em dia, caso o senhor queira conferir...
- Não, não sou - e mostrou a sua carteira funcional de Ministro do Supremo Tribunal Federal, com o nome David Francisco Molina Casales em alto relevo para Marília.
- Doutor, o que quer? - disfarçava Marília, tentando se refazer do choque.
- Não me chama de doutor. Você sabe quem eu sou, Marília. Vinte anos, né? - retrucava David.
- O que você quer de mim? Já não te deu um fora bom o suficiente?
- Olha, Marília, eu preciso te falar muita coisa que você não quis ouvir. Tô esperando há muito tempo e vai ser agora.
- Eu tenho outras coisas mais importantes pra fazer ag...
- Cala a boca! É a minha vez de falar, e você só vai fazer escutar. Só isso, e apenas isso. Você sabia que destruiu a minha vida? Que nunca mais pude ser feliz desde que me deixou? Que eu acreditei naquele amor, acreditei que íamos casar, e você simplesmente sumiu da minha vida?
- Também, você me traiu. - retrucou Marília, cheia de si.
- É o que você diz, que você pensa, que você sempre quis acreditar. Você não gostava de mim mesmo, essa é a verdade.
- Gostei, gostei por um tempo. Mas depois, não queria mais suportar suas loucuras e seus devaneios. E minha família nem gostava de você, essa é a verdade. Como eu iria querer um cara que minha família não gostava?
- Lutasse por mim. Verdade é que você nunca me amou.
- Acho que... Acho que concordo contigo. Nunca te amei mesmo.
- Marília, era pra gente ter sido feliz, muito feliz. Eu ia te fazer a pessoa mais feliz do mundo, cara. E você me deixou, assim, completamente vazio...
- Eu nunca te esqueci, mas eu precisava tocar minha vida.
- Eu toquei, mas deixei o amor lá atrás. Eu ainda te amo, sabia?
- Então, seja feliz, David.
- Marília, olha o que você se tornou e eu me tornei. Você se formou e veio pra essa merda de cidade, no cu do Judas, e deixou a vida brilhante que podia ter ao meu lado. Eu, virei ministro.
- E daí? Sou mais feliz do que se estivesse contigo. Você foi só uma paixãozinha, só.
- Marília, não quero mais nada de ti. Só quero um beijo de despedida. E nunca mais nos vemos.
- Não, não quero te beijar. - retrucava Marília veementemente.
Num rompante, David pulou o balcão e a agarrou. Deu-lhe um beijo sincero de despedida. E depois disso, um soco, pra que ela soubesse o quanto a odiava. Acendeu o seu cigarro e foi embora daquela loja, aquele muquifo, e foi viver sua vida.
Marília nunca conseguiu ser feliz. Morreu de câncer aos 72 anos, sozinha, em Cachoeiras do Macacu, deixando a sua parte nos negócios para seus irmãos.
David teve uma carreira brilhante. Se casou no ano seguinte, aos 40, numa bela cerimônia no Rio de Janeiro. Seu padrinho de casamento foi Mariano Rangel - antes, amigo sincero de Marília, e haviam 20 anos, melhor amigo de David. Aos 48 anos, renunciou a sua vaga de Ministro do Supremo e resolveu disputar eleições - ter novas emoções em sua vida. Se tornou Governador do Rio de Janeiro, e oito anos depois, Presidente da República. E foi um dos melhores da história.
A avenida onde fica a loja de Marília, hoje em dia, se chama "Presidente David Casales". E Marília ainda era viva quando isso aconteceu. Pra alguns mais amigos, que iam à igreja junto com ela, costumava a contar que era pra ter casado com o Presidente Casales, mas não deu.
E David foi muito feliz. Teve cinco filhos: Marcelo Luís, Frederico Guilherme, Juliana, Pedro Augusto e David Francisco Júnior. Morreu aos 93 anos, com o coração em paz e repleto de amor a sua volta.

Um comentário:

Tibério disse...

Já te disse que manipulando uma arma, não precisas manipular ninguém?

:D